A sexualidade à luz do Mito de Aristófanes

A literatura mítica dá-nos a conhecer que Eros - deus do amor - é o mais antigo dos deuses, sendo ele, também, conhecido como uma criança alada (Cupido) munida de arco e flecha para atingir o coração ou o fígado com as suas flechas envenenadas pela paixão e pelo amor. Segundo Aristófanes (dramaturgo grego que nasceu no ano 447 antes de Cristo e morreu, aproximadamente, a 385 antes de Cristo), Eros é um dos mitos protagonizados por Zeus à humanidade, através do castigo que condena-o para toda a eternidade a desejar encontrar alguém a quem amar, “sentença” que parece estar imortalizada na voz de Tom Jobim quando criou “Eu sei que vou te amar” no século passado: “Eu sei que vou te amar / Por toda a minha vida, eu vou te amar / Em cada despedida, eu vou te amar, / Desesperadamente / Eu sei que vou te amar (…)”.

Todavia, o mito do Andrógino relatado pelo dramaturgo grego e o texto clássico “O Banquete” de Platão faz-nos pensar se o amor poderá ser uma sensação ou, pelo contrário, uma condenação. E, tudo começou no tempo dos deuses do Olimpo - um tempo primordial - no qual, a natureza humana, imagine, era diferente daquela que conhecemos hoje. Diz o mito que, no início, existiam três géneros de seres humanos - o macho, a fêmea e, ainda um terceiro, que reunia características dos outros dois - e que fora batizado de Andrógino.

Este ser, no que respeita à forma, é-nos apresentado como sendo inteiro e globular, possuindo as costas e os flancos arredondados, têm duas faces iguais uma da outra, uma cabeça única onde assentavam as faces, colocadas em sentidos opostos, tinham ainda quatro orelhas, órgãos genitais em número de dois, postura corporal idêntica à nossa, ou seja, caminhavam erectos, mas nos dois sentidos que desejassem. Porém, necessitando de correr, faziam-no às cambalhotas, projetando as pernas para o ar, como os equilibristas, até regressarem à posição vertical. Assim, apoiados nos seus membros, que eram então oito, deslocavam-se velozmente em círculo.

Quanto a origem de cada género dos seres humanos pode ler-se que o macho era o rebento Andros, filho do Sol, a fêmea era Gynos, filha da Terra, e Androgynos era filha/filho da Lua. Este ser reunia as características dos outros dois, feminina e masculina, dado que também a Lua partilhava da natureza do Sol e da Terra. Daí o facto de serem globulares, pois eles possuíam características semelhantes dos seus progenitores: Sol, Terra e Lua.

Sobre a figura do Andrógino, percebe-se que este ser é dotado de uma terrível força e resistência física, características que permitem-lhe gozar de uma ambição desmedida, a ponto de conspirar contra os deuses. Contudo, Zeus - o deus dos deuses - que tudo sabia, descobriu o plano conspiratório dos Andróginos e, com as restantes divindades do Olimpo, passou a delinear um castigo para aplicar aos subordinados e, a primeira das possibilidades pensadas seria a extinção da raça, fulminada por um raio. Entretanto, repensou, e mudou de ideia, pois isso não convinha aos deuses, pelo simples facto de os deuses deixarem de receber as homenagens e os sacrifícios que lhes advinham dos humanos. A outra possibilidade surgiu depois de Zeus muito pensar e que o levou a decidir, e arranjou um meio de manter os machos, mas acabar com a sua arrogância, e resolveu dividi-los ao meio, um por um, deixando-os mais fracos e, beneficiando os deuses ao aumentar o número de benefícios.

Segundo Platão: “Dito e feito. Pôs-se a cortar os homens às metades, exatamente como se cortam sorvas para as pôr em conserva (ou como se faz aos ovos com um cabelo). À medida que os ia cortando, encarregava Apolo de lhes virar o rosto e a metade do pescoço para a superfície amputada, na ideia de que os homens se tornariam mais humildes com o espetáculo da sua própria amputação diante dos olhos. E ordenou ainda que os sarasse das restantes feridas, Apolo tratava, pois, de lhes virar o rosto, e repuxando a pele de todos uso lados para aparte agora designada por ventre, apartava-a com toda a força, à maneira de bolsas providas de cordões, em volta de uma única abertura que deixou mesmo no meio do ventre - justamente o que hoje chamamos de umbigo. Alisou-lhes ainda numerosas rugas que ficaram e modelou-lhes o peito com o instrumento do género dos que usam os cordoeiros para aplanar as rugas do coiro em volta da forma. Todavia, deixou-lhes umas tantas, mesmo na região do ventre e do umbigo, como lembrança do antigo estado.

Ora, quando a forma natural se encontrou dividida em duas, cada metade, com saudades da sua própria metade, se lhe reunia; e estendendo as mãos em volta, enlaçadas uma na outra, não mais aspiravam do que fundir-se num só ser. Começaram, assim a sucumbir à fome e à inação geral, porque se recusavam a fazer fosse o que fosse uma sem a outra; e sempre que uma das metades morria, a que ficava procurava ao acaso outra sobrevivente a que juntar-se, fosse a metade de um ser completamente feminino (o que agora chamamos mulher) fosse a um ser masculino. Deste modo, a raça ia desaparecendo…Compadecendo-se, por fim, Zeus lança mão de outro artifício e muda-lhes para diante os órgãos genitais - até aí, efetivamente, era na parte exterior que se encontravam, processando-se as funções de gerar e dar à luz, não de uns para outros, mas por intermédio da Terra, à semelhança do que acontece com as cigarras. Ao mudar-lhes, pois, os órgãos genitais para diante, Zeus determinou que a geração humana passasse também a efetuar-se de uns para outros, mediante tais órgãos - na fêmea, por intermédio do macho. E eis o que tinha em vista: se acaso a cópula se desse entre homem e mulher, o resultado seria procriarem e perpetuarem a espécie; se entre dois varões, haveria pelo menos a plenitude da união e, uma vez apaziguado o desejo, poderiam voltar às suas tarefas e interessar-se por outros aspectos da vida. Dessa época longínqua data, sem dúvida, a implantação do amor entre homens - o amor que restabelece o nosso estado original e procura fazer de dois em um só, curando assim a natureza humana.” (O Banquete, p.53-55)

Quer isto dizer que a humanidade, segundo esta narrativa mítica, surge do Andrógino - que devido a sua polarização (masculino/feminina), fá-lo ser pleno, dotado de forças e características para concorrer com os deuses e, talvez, até dominá-los, pois a sua divisão surge de um castigo divino, cuja condenação perpétua é ser uma “téssera” humana, ou seja, uma metade, divididos como estão.

O vocábulo téssera provém da palavra grega “symbolon” que era o nome dado a metade de um dado que o dono da casa repartia com o seu hóspede para que mais tarde eles os dois, ou os seus descendentes, pudessem reconhecer o laço de hospitalidade que os unia. Outra aplicação comum da téssera ocorria nos tempos de guerra, antes da partida para a frente de batalha, o soldado e sua amada rasgavam ao meio uma foto do casal, a metade que continha a imagem do soldado ficava na posse da amada, a outra metade da foto com imagem dela ficava com o soldado. O objectivo seria cumprir a promessa de um dia juntarem as duas metades da foto de forma a voltar a ser uma só foto. E assim, acontece no amor:

“Sempre que um amante encontra essa mesma metade que lhe pertence, eis que de súbito os assalta uma estranha impressão de amizade, de parentesco, de amor, enfim e, a tal ponto que já não aceitam separem-se um instante que seja! Esses são justamente os que permanecem juntos durante toda a sua vida - muito embora não soubessem sequer dizer-vos o que esperam, em concreto, um do outro…Não passa, de certo, pela cabeça de ninguém que seja meramente a união dos sentidos a causa do seu afã e do prazer que sentem em estar juntos. Visivelmente, é a alma de cada um que aspira a algo mais, algo que ela não sabe exprimir mas que advinha e deixa discretamente insinuar-se…” (O Banquete, p.53-55)

Contudo, Freud em seu texto Uma recordação de infância de Leonardo da Vinci escreveu que talvez o amor seja uma outra coisa, pois se o mito do Andrógino elucida a necessidade da alma em encontrar outra alma, de forma a dar-lhe a ilusão de força e de poder do Andrógino, a Psicologia defende que a téssera do mito já é o todo porque do ponto de vista psíquico o Homem é constituído da unidade andrógina (masculino/feminina), um ser único e completo, portanto.

Assim, podemos concluir que o amor poderá ser uma escolha, cada um de nós pode escolher se quer amar o nosso igual, ou a outra metade que cada um de nós necessita encontrar para completar o todo.

Nuno Pinto Ferreira
Psicólogo Clínico e Psicoterapeuta
Psicologia Para Todos

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O Masculino, uma construção